Navegar também rumo ao que nos salva

Texto de apresentação de Arquipélago: movimento coletivo de artistas e pesquisador_s das artes ilhad_s

Guilherme Mautone
5 min readApr 21, 2020

T. S. Eliot, poeta de língua inglesa e Nobel de Literatura, iniciou seu épico modernista A Terra Devastada com uma imagem ambígua sobre a crueldade do mês de abril, capaz de fazer “brotar lilases na terra morta” e atiçar “a memória e o desejo”. Se, contudo, elas brotam da terra morta, é porque ali estavam soterradas sob suas formas hibernantes, dormitando até a chegada do bom tempo. É possível enxergar na abertura do poema de Eliot também uma metáfora para o aparecimento do próprio poema, para a emergência do artístico em dias cruéis. Para além da ideia conservadora de que a arte serve à mera contemplação humana e, portanto, à passividade do perceber e do pensar, surge a ideia contrária de que a arte desponta ali mesmo onde há crise e complicação, despertando-nos, atiçando-nos e nos incomodando.

Há uma obra de Antoni Muntadas, artista catalão que esteve em Porto Alegre em 2007 para o Fronteiras do Pensamento, que também atiça o observador, fazendo-o pensar sobre sua própria percepção. Na obra, que consiste basicamente num enunciado escrito em branco sobre um fundo vermelho, lê-se “Atenção: percepção requer envolvimento”. Com ela, Muntadas brinca com o observador. Se por um lado oferece a ele um objeto que mimetiza algo das placas comuns — “Não pise na grama” ou “Ao entrar no elevador, certifique-se que o mesmo se encontra no lugar” — capturando sua atenção, por outro lado aproveita sua captura e o obriga a pensar sobre o que é perceber e sobre o fenômeno cognitivo da percepção. Algo que, para Muntadas, exige sempre envolvimento, engajamento e implicação.

Antoni Muntadas, “AVISO: PERCEPÇÃO requer o envolvimento”. Foto: Fábio Alt / FVCB

Na filosofia, a percepção é o tema que comumente introduz o problema do conhecimento só para ser, tão logo, deixada de lado. Pelo menos desde Platão e Aristóteles, ela é pensada como algo que nos acontece passivamente, legando aos discursos teóricos que se ocuparam da arte com subsequentes problemas sobre a contemplação do artístico em termos de uma passividade receptiva. Ideia que desencadeou seus próprios problemas para a estética, essa disciplina filosófica tardia. Merleau-Ponty, até onde sei, foi um dos primeiros filósofos com a ousadia de cogitar a percepção como problema filosófico central, contrariando a ideia de que ela seria a prima distante do conhecimento, pois sempre muito afeita, conforme escreveu Descartes, aos erros dos sentidos. Alva Noë, filósofo contemporâneo, tem pensado na percepção como uma espécie de atividade, marcada por habilidades e competências e, assim, pelas ideias generosas de desenvolvimento e aprendizado. Em que medida, portanto, a arte e, sobretudo, a arte contemporânea pode nos ajudar a desenvolver nossa própria percepção? Ativá-la, atiçá-la? Como engajar o corpo na própria percepção? Como fazer para que revisitemos o mundo? Pensando-o de novo?

O recente projeto Arquipélago, inaugurado no início do mês de abril, em pleno isolamento social, propõe uma oportunidade de exibição dos muitos sentidos de fazer arte, oferecendo-a à percepção do público e à construção de associações, pensamentos e reflexões. O movimento coletivo formado por uma série de artistas e pesquisadoras(es) em arte — sob a coordenação criativa de Laura Cattani e Juliana Proenço (Torus), Munir Klamt (Furg e Ío) e Frantz Soares — objetiva inaugurar um espaço virtual por meio do Instagram no qual artistas possam compartilhar com o público suas próprias criações, recriações e processos artísticos e no qual pesquisadoras(es) possam apresentar textos e imagens capazes de dialogar com as propostas artísticas. A ideia por trás do nome do projeto surge como um convite para que artistas, pesquisadoras(es) e público pensem também, com a ajuda da arte, sobre os muitos sentidos que a imposição do isolamento social diante da pandemia da covid-19 poderá tomar para cada um de nós. Ilhados, o projeto nos convida a empreender navegações simbólicas, artísticas e reflexivas.

A estratégia de isolamento, orientada pela OMS e pelos órgãos nacionais de saúde, é uma das muitas formas (e talvez a mais eficiente) de diminuirmos globalmente a taxa de contágio do vírus, não sobrecarregando os sistemas de saúde. Não deixa de ser algo interessante pensar que a imposição do isolamento social, atualmente transformada em pauta política à esquerda e à direita, atribui uma parcela de responsabilidade pelo enfrentamento da pandemia a cada um de nós individualmente, obrigando-nos a repensar nossas próprias escolhas e o quanto elas poderão por em risco a vida de outros. Nesse sentido, é crucial reconhecer que a pandemia da covid-19, além de exigir uma reflexão contundente sobre a desigualdade social, uma vez que a escancara, também deveria apontar a todos nós uma saída da passividade coletiva, fazendo-nos mais solidários e implicados em mudar a realidade social.

Há certamente muito trabalho a ser feito. E ele será social e político, reflexivo e artístico (isso já deveria ser razão suficiente para redimensionar nossa própria ideia de ‘trabalho’, abrindo-o ao campo do criativo, do elaborativo e do coletivo). Ademais, tanto melhor se ele puder atender a esses campos diferentes. Importante, agora, é não sucumbir mais uma vez à passividade e à anestesia, ficando melancolicamente à sombra do que o psicanalista Edson de Sousa, em sua recente entrevista à Zero Hora, caracterizou como a “imagem da morte” representada pela pandemia, rondando-nos do norte a sul. Ao citar o hino Patmos (1803) do poeta alemão Hölderlin, poema no qual a humanidade é convocada a caminhar sem medo sobre as pontes leves ainda que não existam mais os deuses e seus benevolentes auxílios, o psicanalista indica a urgência de nos implicarmos em nossa própria travessia, testemunhando-a, recobrindo-a de palavra enquanto caminhamos juntos. Ou, então, enquanto navegamos de uma ilha à outra, de uma imagem à outra, cartografando o arquipélago, problematizando percepções e pensamentos. Mas nessa navegação, assim como na percepção e no pensamento, é preciso implicar-se, projetar e construir juntos. E ousar acreditar na mudança, ainda que alguns a tomem como trivial utopia. Fazer, talvez, como Rilke em seu Torso arcaico de Apolo e assumir que: “Força é mudares de vida”.

Arquipélago é um movimento coletivo de artistas e pesquisador_s das artes ilhad_s, dispost_s a compartilhar processos e potências criativas, como forma de reexistência e conexão em meio ao isolamento e às diversas crises que o permeiam.

_s artistas participantes irão compartilhar seus processos criativos ao longo do período de isolamento, trazendo referências visuais e conceituais, considerações sobre a criação artística no cenário atual, ensaios visuais e rotina de trabalho com as adaptações impostas pelo confinamento.

_s pesquisador_s convidad_s proporão reflexões imagéticas e/ou textuais que dialoguem direta, indireta ou transversalmente com os recortes processuais apresentados pel_s artistas, numa espécie de adaptação do atlas warburguiano à era (da pandemia) digital — as postagens serão agrupadas sob a hashtag #atlasarquipelago.

Siga @arquipelago_2020

--

--

Guilherme Mautone

Atento aos sinais | Doutor em Filosofia pela UFRGS | Filosofia da Arte, Estética e Crítica de Arte