Sim: eu li os comentários.

Breve ensaio em resposta aos detratores

Guilherme Mautone
23 min readAug 7, 2019

Logo após a publicação do meu pequeno texto sobre o problema da censura no site da Zero Hora, uma das primeiras orientações que recebi de amigos foi um imperioso “Não leia os comentários!”. Tratava-se, não tenho dúvidas, de uma orientação carinhosa para que eu me protegesse de possíveis ofensas, calúnias, preconceitos e toda sorte de impropérios que, no Brasil de 2019, saíram de vez dos antigos armários ganhando retumbante clareza existencial. No entanto, minha teimosia e minha pequenina curiosidade (um tanto narcisista, admito) com a opinião alheia me impediram de seguir à risca o preceito dos mais experientes. Sim: eu li os comentários.

Rir diante de uma situação difícil é inquietante, sobretudo quando ela é potencialmente assustadora. Se não me engano, Freud pensou essa reação emocional curiosamente inoportuna como uma espécie de mecanismo defensivo. A gargalhada irrompe de um lugar falseado, estereotipado, como se quem estivesse a rir fosse uma personagem e não o próprio sujeito. É assim que todas as coisas importantes permanecem como que protegidas, sem ansiedade, sem desacomodação egóica.

Ao pensar na minha própria risada em um segundo momento fui, então, tomado por certa consciência de que a minha reação inicial havia sido defensiva, mero alívio cômico para lidar com a potencial perturbação. Hoje, domingo, dois dias depois, encontro-me plenamente perturbado. E escrevo precisamente por essa razão. Para que o escárnio não esconda a seriedade. Para que pensemos sobre a intolerância. Para que eu me salve. Para que, finalmente, a palavra, já de tão seviciada, não morra em assombro, sozinha, esvaziada, feito a carapaça velha e seca de um bicho novo.

Não me interessa quem disse o quê; já que outros tantos igualmente absortos em alienada devoção à crueldade e à mentira poderiam dizer as mesmas coisas. Sim, isso de que falo anda orgulhosamente à boca grande, sem vergonha de si mesmo, diariamente autorizado pelas nossas autoridades. Logo, tomo os enunciados de discordância ao meu texto e ao artista a quem ele foi dedicado enquanto construções objetivas, coisas do mundo. E as tratarei, aqui, desse modo, enquanto espécies muito fracas de argumentos, mas ainda assim argumentos. Sem dúvida, para teses caducas. Mas as respondo, oferecendo o contraditório e mantendo, assim, a palavra viva (lembrem-se, eu já disse, sou teimoso).

Gostaria de iniciar fazendo uma sinopse muito rápida do que se está prestes a ler. É que os comentários, tomados enquanto argumentos, foram enunciados com a finalidade de defender a censura ao trabalho de Ceccon e de defender sua remoção do espaço expositivo. Assim, tomo-os como argumentos pró-censura. E eles possuem, para o meu verdadeiro deleite, diferentes naturezas, podem ser tipificados. O primeiro argumento é um argumento ontológico, o segundo um argumento estético, o terceiro um argumento administrativo/institucional e, por fim, o quarto é um argumento psicológico. Discutirei um a um ao longo desse texto. Aproveito para agradecer, rapidamente, aos comentários favoráveis e que, como eu, reconhecem a importância da valorização do pensamento, do diálogo e da liberdade de expressão.

A primeira tese claudicante é de que a obra censurada era pornografia. Esse é um argumento ontológico e, por ontológico, penso-o como um argumento que afirma sobre a natureza de alguma coisa. Suponha que eu diga: “Eu sou solteiro”. Ora, isso afirma algo de mim, afirma o fato, objetivamente determinado, de que não me encontro no momento comprometido com ninguém. Essa afirmação ou é verdadeira ou é falsa, de modo que essas propriedades (verdade e falsidade) são relativas à linguagem, às proposições, aos modos como dizemos as coisas. A afirmação em questão, ao afirmar que sou solteiro, informa-nos com verdade que não sou casado, nem que estou namorando (embora eu desejasse que isso não fosse verdade). Quando se afirmou que a obra de Ceccon era pornografia se quis dizer com isso que ela não era arte. — Embora estivesse dentro de uma galeria; embora tenha sido feita por um artista; embora seja reconhecida por uma infinidade de pessoas como uma obra de arte; embora seu tema ou assunto esteja muito próximo, por exemplo, ao tema da reconhecidamente famosa pintura de Coubert, chamada de A origem do mundo e que retrata, em detalhes, a genitália.

Gustave Courbet, A origem do mundo, 1866.

Não só o século XIX, na Europa, ostentou produções artísticas que tensionavam o próprio tema em arte; ao retratarem assuntos relativos à sexualidade, à genitalidade, ao erotismo e aos costumes sexuais humanos, também promoveram consciente ou inconscientemente uma problematização sobre quais poderiam ser os temas apropriados ao trabalho do pintor e quais não seriam. Não só isso. A lembrança dessas diferentes produções, de lugares e tempos tão variegados, igualmente suscita discussões sobre o que é apropriado e o que não é num quando e num onde. Porque a arte, embora seja produzida por mulheres e homens geniais ou simples, pobres ou ricos, sãos ou loucos, tem sempre uma situação. A verdade, inegável, por mais que vociferem por angelicalidade e pureza e virtuose celestial, é que os temas sobre sexualidade, erotismo e genitalidade sempre estiveram presentes ao longo das histórias da arte em diferentes culturas.

Artista desconhecido, Escultura fálica romana, séc. I a.C.
Artista desconhecido, Falo de bronze sírio, 100 a.C.
Autor desconhecido, Estátua ancestral Mangbetu (Congo), s/d
Michelangelo, Davi, 1504
K. Hokusai, O pescador e a mergulhadora, 1850
Constantin Brancusi, Princesa X, 1915
Louise Bourgeois, Menina, 1968
Louise Bourgeois, Sete na cama, 2001

De modos mais explícitos ou mais sugestivos, como comentários ou alusões, exercícios de domínio iconológico ou de maestria metafórica, as artes (por serem atividades humanas e não divinas) fizeram, fazem e continuarão a fazer referências ao campo complexo do erotismo, da sexualidade, dos gêneros e das identidades. Negar esse fato por inclinações moralizantes ou eclesiásticas é coisa de gente que se atabalhoou. Ou, também, pode muito bem ser coisa de quem age de má-fé. Não há apenas um tema, um assunto, um só modo de fazer, uma só maneira de apreciar e entender a arte. De modo que se faz necessário buscar, em todos esses segmentos entrecruzados nela, um ecletismo não reducionista. Há aí também um desafio lançado.

Ao chamar a escultura removida da Pinacoteca Aldo Locatelli de pornografia, quis-se dizer com isso que ela servia a outros fins que não a fins artísticos. Mas quais são, afinal, esses fins artísticos? Convido as leitoras e os leitores a fazerem um exercício de imaginação e a pensarem se a obra censurada apresenta visualmente e contextualmente alguma proximidade ou alguma similaridade com o que reconhecemos comumente como pornografia. Tenho certeza de que se fizerem esse interessante exercício de comparação imaginativa, vocês todos serão obrigados a concordar com o fato de que não existem muitas semelhanças entre a escultura censurada e a pornografia. Alguns poderão objetar, e com razão, de que existem sim potenciais similaridades formais, aspectos morfológicos e fenomenologicamente acessíveis, que nos permitem aproximar a escultura de Ceccon de, digamos, uma peça de pornografia ou de um ‘brinquedo’ erótico. Eu entendo a objeção e exorto o objetor a pensar, então, heuristicamente, na comunhão entre aspectos formais e aspectos contextuais. Esses últimos não são como os formais, imediatamente acessíveis aos olhos e aos sentidos e precisam ser revelados por outras vias.

Há, penso, um truísmo envolvido na designação de um certo grupo de atividades por artes visuais. É obvio que elas são coisas feitas para serem vistas, acessadas pelos olhos, experimentadas sobretudo perceptualmente. Já não é algo tão óbvio, contudo, o fato de que por serem visuais (1) o caráter visual determine a totalidade da produção desse objeto e (2) a visualidade delas determine a totalidade da recepção e da discussão desse objeto. Existem outras atitudes possíveis nos campos produtivos, receptivos e dialógicos em relação às artes que recortam poéticas (investigações sobre como a arte é produzida, com vistas a sua produção), estéticas (investigações sobre como a arte pode ser recebida sensível e intelectualmente) e filosofias e teorias da arte (investigações sobre a natureza da arte, sobre suas definições canônicas e assim por diante). Bem como há, por outro lado, uma incoerência envolvida na designação desse mesmo grupo de atividades por belas artes, uma vez que as artes não estão mais implicadas necessariamente num projeto de elaboração da consumação estética da beleza. Vejam, também há incoerência em designá-las como artes plásticas, já que plasticidade é um termo, além de ambíguo, talvez inadequado (pelo menos assim me parece) para falar de fotografia, vídeo, cinema. No território das classificações, as coisas, sobretudo artísticas, passam a ostentar certa opacidade. Não faço esse desvio pela linguagem e pelo modo como nos referimos as coisas em categorias para testar a paciência de quem lê, mas para chamar atenção para o lugar onde nos encontramos ao falar de arte; seara complexa, cipoal denso, onde coisas produzidas precisam ser credenciadas como arte e os conceitos e definições tradicionais às vezes parecem não mais albergá-las consistentemente. Lembro aqui da famosa antinomia de Georges Perec, em Pensar / Classificar, de 1985, na qual ele diz que aquilo “que não está ordenado de um modo definitivamente provisório o está de um modo provisoriamente definitivo”. Dá-se um mise en abyme diante dos procedimentos de classificação e definição. Meu ponto aqui, retomando-o depois da digressão, é que a insistência no aspecto formal nos remete algumas vezes ao abismo das classificações. Essa ideia não deverá ser tomada enquanto um tese cínica sobre as artes, não na medida em que se ofereçam outros critérios de análise. Daí minha insistência numa comunhão entre forma e contexto, intenções e contextos, e assim por diante, para discutirmos a arte. Essa também não é, de modo algum, uma perspectiva cética para a teorização ou o debate sobre o artístico. E isso porque nos reconduz ao território complexo, porém surpreendentemente rico, das formas de vida de Wittgenstein, que leio a partir de Cavell; dos mundos da arte de Danto, Dickie e Becker; dos campos e habitus de Bourdieu; dos sistemas sociais de Luhmann; das atividades organizadas de Noë; dos agenciamentos de Gell e, por fim, da caridosa ideia de histórias da arte de Gombrich. Sim, são temas desafiadores para o diletante ou o apreciador ocasional de arte; e que não deveriam assustá-lo, afastando-o da arte, mas pegá-lo de chofre pela curiosidade, pelo desejo. Aristóteles escreveu, no Livro I da sua Metafísica, que todos têm por natureza o desejo em conhecer. Essa é a ideia.

Mas voltando à afirmação taxativa de que a escultura de Ceccon era pornografia e não arte, poder-se-á também defender que o que realmente importa nesse caso é como algo é usado, de modo que x se torna pornográfico na medida em que ganha, por um usuário específico, uma conotação sexual, uma finalidade erótica, um uso autosatisfatório. Aqui chegamos então a uma objeção enramada num cipoal que mais me agrada, longe da desertificação formal das imagens. E isso porque recoloca um tema que, para mim, é caro, pois corresponde a uma tese pragmática, que se encontra no Wittgenstein das Investigações Filosóficas em sua ideia de que o significado de algo é seu uso. Eis, portanto, o que parece derrubar das minhas mãos o bolo… A objeção é justa, reconheço; mas, para ela, tenho também uma resposta.

É que a escultura de Ceccon não foi afixada no espaço expositivo da Prefeitura de Porto Alegre para que as pessoas a tomassem enquanto um objeto sexual com a finalidade de autosatisfação erótica. Por essa razão (e também por outras várias…) é muito importante lermos com atenção e em pormenor os breves textos disponibilizados pelas paredes de museus, galerias e demais espaços expositivos. Porque eles preparam e direcionam a ação e as intenções dos potenciais contempladores para fazer x e não y. De modo semelhante, informam-nos sobre questões mais teóricas, históricas e interpretativas das obras.

Vou apresentar um exemplo ilustrativo: Um conhecido, num dia desses, enganou-se terrivelmente ao dizer que estava apreciando ‘anjinhos medievais’ com sua namorada em um museu europeu quando, na verdade, tratavam-se de anjinhos renascentistas muito bem compostos e realistas; se ele tivesse lido com atenção os textos disponibilizados, ousando ultrapassar o registro formalista de apenas olhar as obras, interessando-se também por aspectos, digamos…, documentais, não teria cometido o equívoco que cometeu. O exemplo é ilustrativo porque se trata de um caso onde há uma predominância da ação ver-arte; em detrimento da ação ler-arte, interpretar-arte, discutir-arte: portanto, conhecer-arte.

Muitas vezes os artistas e curadores inclusive indicam nesses espaços o que se espera diante de uma obra ou quais são as nossas possibilidades de interação com elas. É bem verdade que não se pode evitar que porventura alguém se sinta, digamos, entusiasmado diante de uma obra de arte. Ainda assim, essa reação não é aquela que foi intencionada pelo artista ou também pelos agentes que se encarregam dos espaços nos quais seus trabalhos são exibidos. Essa reação é (é sempre válido reiterar) uma reação privada, de foro íntimo e que se dá no bric-à-brac subjetivo de cada um e que tem lugares e tempos específicos para sua consecução hedonística. Esses diques, como pensou Freud, que em certo sentido canalizam alguns impulsos, existem nas formas adultas do pudor e da vergonha, inscrevendo certas proibições e interdições. E tão melhor que existam. Todos deveríamos saber que o dionisíaco quando prescinde de certos liames apolíneos acaba pagando altos dividendos dissociativos. Ações consideradas sexuais ou eroticamente autosatisfatórias não devem ser consumadas em espaços artísticos (Ao menos que o artista indique claramente isso sob a égide de uma contumaz libertinagem, o que é assunto para outro dia…). Portanto, a objeção sobre o significado como uso para designar a escultura de Ceccon como pornografia não é válida. Porque o uso que se faz da pornografia não corresponde a um uso socialmente esperado e socialmente consolidado (consuetudinário, poder-se-ia dizer)diante de obras de arte. Não é algo dado culturalmente que consumemos em galerias nossos desejos sexuais. De todo modo, diante do que expus, só me resta dizer, respondendo mais objetivamente a um dos comentários: nós não estamos confusos; com todo respeito, vocês é que estão.

A segunda tese que me foi sugerida pelos comentários ao meu texto sobre a censura, dizia respeito ao importante tema da finalidade humana, ou finalidade sensível, da obra de David Ceccon. Entendo esse argumento como um argumento estético. É importante entender que essa palavra, muito polissêmica na língua portuguesa, cobre uma infinidade de sentidos. Uma pesquisa ao dicionário ou ao Wikipédia logo remeterá vocês para alguns sentidos interessantes. Gostaria de chamar atenção para dois deles aqui. O primeiro sentido de ‘estético’ diz respeito àquilo que agrada porque é bem composto; que causa prazer estético porque possuí determinada forma, que suscita a beleza, o deleite e assim por diante. O segundo sentido de ‘estética’ indica um campo da investigação filosófica, como já mencionei, que se ocupa da sensibilidade humana, da nossa capacidade de ver, escutar, sentir, experimentar. A filosofia, que entendo como uma atividade marcada pelo hábito de se colocar questões que as demais áreas dão por respondidas, reserva, portanto, uma parte de sua atenção ao tema da sensibilidade humana. E entendo os questionamentos sobre esse assunto como fazendo parte do campo da estética. Assim, chegamos a um ponto interessante. Estética como adjetivo e como substantivo. Fiz esse desvio um tanto pernóstico (sejam indulgentes comigo…) para explicar-lhes a razão de existir em nossa linguagem cotidiana dois referentes tão distintos para uma mesma palavra. Por um lado, o adjetivo, referindo estética como uma qualidade de coisas, ou a propriedade específica de agradar ou causar encantamento e, por outro lado, o substantivo, referindo à existência de uma área de investigação teórica dentro do escopo da própria filosofia. Minha resposta à tese aventada no comentário é, basicamente, a seguinte.

Sim, a tradição artística durante muito tempo foi compreendida como estando implicada com uma estética (como adjetivo), de modo que por longo tempo as obras de arte foram entendidas como necessariamente possuidoras (senão não seriam chamadas de obras de arte, já que eram definidas assim) de uma essência específica capaz de consumar nos sujeitos as sensações de encantamento, deleite, agrado, beleza. No entanto, para ir logo ao ponto, é importante lembrar as palavras caridosas de Ferreira Gullar em sua Argumentação contra a morte da arte, de 1982, aqui e reafirmar sua ideia de que “De fato, a arte não evolui; muda”. Essa mutabilidade da arte que Gullar entende como sendo algo de fato, é o que nos reconforta no estudo da arte e é o que nos reconforta enquanto agentes desses mundos da arte, complexos sistemas de atividade e trabalho humano. Nosso objeto de estudo é variado, amplo, diferencial; ele muda à revelia das definições e garante para nós uma oportunidade de seguidamente nos inquietarmos com o que pensávamos antes estar garantido. É, digamos, um ceticismo saudável, proveitoso, heurístico. Gullar também nos ensina com isso que a arte, que precisamos urgentemente entender como aquela curiosa procissão de objetos e experiências produzidas pelos artistas dentro de contextos específicos, pode mudar. Quem legisla sobre essas mudanças não são, sinto informar-lhes, os filósofos, os críticos, os professores, os jornalistas, os eventuais apreciadores de arte ou, então, aqueles que nada sabem sobre arte, que sequer se interessam genuinamente por ela, mas que têm sempre algo na ponta da língua a dizer sobre qualquer coisa pelo simples, porém tolo, prazer em dizer, dizer, dizer, dizer, dizer, dizer, dizer, dizer, dizer… (Notem como algumas palavras parecem esvaziar ao serem incessantemente repetidas. Não é algo curioso?). Quem legisla sobre o que a arte é ou não é são, sempre, os próprios artistas; pois, no limite, são eles que a produzem e que se encarregam de sua fatura. Alguns mais afeitos à crítica e ao mercado de arte certamente me chamarão de romântico, talvez de utópico. E eu lhes respondo, com todas as mesuras e com franqueza, dizendo que prefiro ser romântico e utópico se a alternativa a isso for ser um realista sempre ajustado às expectativas do mercado. Claro que é importante que a arte esteja nas paredes, mas também me parece importante que ela saia delas e das revistas de decoração e do circuito mercadológico das grandes feiras. Esse é, retomando, o meu ponto para o argumento da arte definida pela estética. Há toda uma tradição de artistas que não estão exclusivamente interessados em fazer uma arte que suscite necessariamente deleite, encantamento, beleza. E que não estão interessados em corresponder às expectativas de venda do mercado que, no mais das vezes, serve ao elitismo e à chiqueria das salas e quartos de algum palacete urbano numa grande metrópole. O esteticismo, doutrina que advoga uma essência estética na arte como propriedade diferencial dela em relação as outras coisas, implica sempre um formalismo. E nós sabemos bem, através da história das definições e teorias da arte, até onde pôde chegar esse formalismo. Sobretudo com as parvoíces de Clement Greenberg e os preconceitos programáticos do New Criticism de Monroe Beardsley. O primeiro lançou o mito da planaridade num horizonte teleológico e avaliativo; o segundo deitou fora Duchamp e os conceitualistas do escopo da arte. Hoje em dia muitos artistas elaboram seus trabalhos sob uma certa inspiração duchampiana. Logo Duchamp que ao brincar com seriedade com um banco e uma roda de bicicleta, desejou e ousou romper com a estagnação de uma tradição que gestava e repetia, em sua avaliação, uma arte retiniana, uma arte só da retina. Ou seja, infinidades de objetos belos que agradavam os olhos e deleitavam o público. Mas essas coisas não mais correspondem para a (dita) arte ocidental, desde Duchamp pelo menos, a um parâmetro exclusivo de poética. Para os apreciadores e pensadores da arte ele é, sequer, o parâmetro exclusivo de estética e de teoria.

Essa escolha, que já é história para nós contemporâneos, deve ser respeitada e justamente credenciada também como artística. Muitos hoje fazem como fez Duchamp e apresentam sua arte enquanto modalidades de investigação de temas, assuntos, problemas, hábitos humanos, brincadeiras, chistes, como se a arte para eles fosse uma ferramenta muito peculiar, lembrando aqui a ideia recente do pensador Alva Noë em seu Strange Tools: Art and Human Nature, de 2015. E nisso estão inteiramente justificados, estão em acordo em sua conversa também com outros tipos de artistas, a saber, àqueles que herdaram dos grandes mestres e mestras do passado o desejo de pintar e esculpir belamente. Há lugar para todas e todos nos mundos da arte, conquanto não briguem em demasia... Lembro também da originalidade ímpar de Ernst Gombrich quando abre sua História da Arte, de 1950, lida por gerações e gerações de amantes e aficionados e também por meros diletantes da arte, dizendo que não existe uma ‘História da Arte’, única, com iniciais maiúsculas e academicistas, mas simplesmente artistas interessados por coisas diversas. Precisamos estar de acordo pelo menos em relação a isso, sobre essa pluralidade caleidoscópica da produção artística ao longo do tempo. Isso nos ensina muito mais que a velha mesquinharia de certas definições eruditas e que as expectativas pelo indiferente que logo se transformam, em nossa natureza, em preconceitos inúteis; esses, alienando seus proferidores, acabam por servir somente ao poderio do que Eliane Brum, em seu recente ensaio ao jornal El País, chamado Doente de Brasil, denominou de ‘autoverdade’.

Os dois últimos argumentos que me foram direcionados também não deixam de ter importância. Um dos comentários conclamava pelo dinheiro público, sugerindo que a obra (ou melhor, o ‘lixo’) de Ceccon havia sido financiada por algum programa brasileiro de fomento às artes . O outro, por sua vez, dizia que a escultura do artista gaúcho era fruto de uma mente perturbada, produto de doença mental. Logo, temos aí um argumento administrativo e um argumento psicológico para a defesa da censura.

O argumento administrativo defendia que obras de arte feitas com financiamento público não podem ser ‘lixo’. É, em certo sentido, uma mistura entre o processo que dá ‘valor’ a uma obra e os processos complexos que determinam o que e quem recebe financiamento público. É preciso destrinchar essa confusão entre valores e procedimentos institucionais/estatais para atacar esse argumento, de modo que destilo dele a seguinte essência: o estado deve usar o dinheiro público para financiar obras que apresentem algum retorno social amplamente reconhecido. Assim destrinchado, destilado, ele se torna mais tangível do ponto de vista do debate. Minha resposta a essa objeção é a seguinte. Parece-me bastante evidente que a lógica da administração das coisas públicas, entre elas a receita arrecadada, deva ser orientada por uma expectativa em relação à devida aplicação de receitas em fins que beneficiem a população, consideradas as diferenças, desigualdades e urgências sociais ainda tão marcantes, por exemplo, em nosso cenário brasileiro. Se, portanto, essa for de fato a tese aventada por um dos comentários, eu devo dizer-lhes que concordo inteiramente com ela. Discordo, no entanto, de que ela seja relevante para a discussão sobre a defesa da censura e, mais especificamente, para a defesa da censura da obra de Ceccon. Isso porque não tenho notícias de que seus trabalhos foram realizados com dinheiro público. De todo modo, isso me leva a uma sugestão pessoal para todas brasileiras e todos brasileiros, que é a seguinte. Sugiro que, no futuro, estejamos cada vez mais atentos ao uso dos bens públicos e, sobretudo, da receita dos municípios, estados e da União, voltando nosso interesse para a administração dela, informando-nos sobre as decisões orçamentárias e participando, na medida do possível, das discussões públicas que estipulam sua aplicação aqui ou acolá. Isso nos tornará, sem dúvida, mais atentos e dimensionará ainda mais a ideia de cidadania e de participação popular. Isso implica estarmos vigilantes, por exemplo, ao uso do patrimônio público com fins privados que, nos dias de hoje, embora seja franca e abertamente reconhecido como desvio e irregularidade do emprego patrimonial, é particularizado (ora, logo o público sendo particularizado…) sob justificativas de segurança e conveniência familiares dos chefes de estado. Não se pode admitir que, como diz o gosto popular, o roto julgue o esfarrapado. Esse é, apenas, popularmente, um pedido por coerência. Outro, que gosto muito também, exorta-nos a não dar moral de cuecas. Contudo, vociferar em contextos específicos, como o que se está aqui a discutir, a questão da administração das contas públicas me parece, com todas as cortesias, uma confusão com os termos do debate. Estou aberto, entretanto, à possíveis réplicas.

Aproveitando a deixa do argumento administrativo, institucional, gostaria de fazer duas observações (discutindo com quem porventura aguentou até este ponto duas ideias). A primeira se trata da questão de quem faz arte na sociedade. Não é algo esperado que o estado se encarregue, ele mesmo, da arte numa sociedade. Sabe-se, outro truísmo, que quem faz a arte, no limite, são os artistas. Embora uma perspectiva sistêmica de compreensão do artístico nos aponte para o reconhecimento da existência de outros agentes que participam também da fatura de uma obra específica, ainda tomamos a relação artista-obra como pressupondo razoavelmente uma atribuição de autoria. Nesse sentido, o estado não deve produzir ele mesmo a arte. Digo “não deve” e não “não produz” porque nossa experiência histórica nos mostrou que o estado em algumas ocasiões específicas produziu ‘arte’ e se empenhou na produção de um ‘artístico’ deveras inquietante. Foram, todas, ocasiões totalitárias. Pense, por exemplo, em O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, filme de 1935 que documenta cenas de um congresso nazista na Alemanha do 3º Reich. Admito que não é sem certa resistência que menciono (e também direciono ao leitor) o filme encomendado pelo Partido Nazista um ano antes. É, por essa razão, pelo reconhecimento de que o estado não deve se empenhar na produção de arte, que chamamos esse tipo de produção de propaganda, com o objetivo de marcar certas diferenças; e não comumente de arte. O que deve, então, o estado fazer em relação às artes? Ora, deve incentivar sua produção, fomentar a participação dos artistas, por meios indiretos, através de projetos de distribuição de receita e editais culturais. Temos no Brasil uma série de modalidades importantes que prescrevem formas extremamente criativas e muito moralizadas de financiamento da arte através da transmissão de receita e, inclusive, da gestão de projetos. Embora essas mesmas políticas (que num passado não tão distante beneficiaram milhares de artistas, agentes, coletivos artísticos, comunidades e projetos dos mais variados) estejam hoje sob a navalha da perseguição ideológica mascarada de responsabilidade financeira. Não há, parece, limites para o escárnio e para maldade em 2019.

A segunda ideia que eu gostaria de sugerir é, na verdade, uma impressão que pode muito bem tomar os ares de uma provocação intelectual (e nisso não deveria haver problema). Parece-me que algo de completamente perverso ganha força, recrudesce e se instala entre nós, pessoas que integram os mundos da arte, quando percebemos com naturalidade que os agentes que deveriam trabalhar em favor das artes e da cultura e deveriam diuturnamente se empenhar numa ampla defesa da liberdade de expressão e de criatividade artística, acabam por reproduzir inadvertidamente os enunciados que precisamente cerceiam essas coisas. Nesse sentido, a censura alardeada pelos manifestantes do MBL ao Queermuseu em 2017 e a censura (sim, foi censura…) à escultura de Ceccon na Pinacoteca Aldo Locatelli são fenômenos bastante diferentes. Porque a mais recente partiu de um agente público à serviço da Secretária da Cultura e não de baderneiros alienados sem vinculação institucional. A justificativa é, em certo sentido, perfeitamente compreensível; tratou-se de uma preocupação com o espaço das artes plásticas dentro das políticas realizadas pela Prefeitura de Porto Alegre, espaço que poderia ser potencialmente prejudicado caso a obra trouxesse à tona muita polêmica. Contudo, no exercício da administração pública será sempre prudente e, sobretudo, correto questionar-se a quem serve, a quem se destina, uma decisão específica que se está prestes a tomar. É a famosa deliberação moral. Quem se beneficiará realmente? Quem ganha o que com essa ação? Quem será por ela afetado? Quais problemas serão suscitados pela minha escolha? É que às vezes se justificam coisas muito abstrusas sob o argumento utilitarista do bem maior, de modo que se faz necessário, sobretudo na administração pública, refletir também sobre a ação, as finalidades da ação e os pontos de ancoragem do que se define por ‘bem maior’. Lacan, o psicanalista francês, sugeriria não sem certa polêmica, é verdade, recolocar a pergunta em termos de: Quem goza com isso?

Por último, para encerrar esse breve ensaio, analisarei o argumento psicológico que foi sugerido para defender a censura da obra de Ceccon. Ele apresenta-se da seguinte forma: É necessário censurar a obra porque ela é o produto de uma mente perturbada, de um sujeito doente (e os 'doentes, ora, o que há de se fazer com eles? Interná-los? Controlá-los? Vigiá-los? Puní-los?). É, sem dúvida, o argumento de que mais gosto e para o qual menos darei importância, sem me enlamear demais nos meandros de teorias psicológicas sobre a produção artística. Pretendo, unicamente, atacar de forma muito ilustrativa e dizer-lhes, sem mesuras, que ele é sobretudo um argumento ignorante. Ignorante porque parte da premissa de que a arte boa ou elevada ou digna de ser exibida e cortejada e aplaudida (notem já como aí ingressamos novamente no âmbito valorativo) é a arte daquelas pessoas que possuem sanidade mental, um atributo cada vez mais problemático de ser definido e explorado. Meu ataque será ilustrativo porque só farei o seguinte: chamar a atenção dos leitores que até aqui chegaram para a infinidade de artistas (ontem, hoje, e certamente amanhã, celebrados como mestres e gênios e produtores de verdadeiras obras primas) que, sim, infelizmente tiveram suas vidas mazeladas por dificuldades de ordem emocional e psíquica.

Vincent Van Gogh, Autoretrato, 1889.

Van Gogh que hoje é um dos mais queridos pintores do gosto popular foi um sujeito atormentado durante toda a sua vida adulta, tinha severos episódios de depressão e de mania, utilizava drogas variadas como potenciais atenuantes para seus sintomas, estabelecia relações extremamente patológicas com seus conhecidos (inclusive no célebre caso onde corta parte da orelha ao discutir com o amigo Gauguin) e depois de internado em um hospital de recuperação para doentes mentais dá fim a sua vida com um tiro no peito. Sua atormentada trajetória pessoal não torna sua arte menos importante, menos bela ou menos desafiadora, menos valiosa, menos querida, discutida, estudada e apreciada por nós todos.

Arthur Bispo do Rosário, Carrossel, s/d

De maneira similar, a obra de Arthur Bispo do Rosário, que foi reconhecida e legitimada pelo mundo da arte como tal e que granjeia cada vez mais interesse público, estudos acadêmicos e espaço internacional, foi feita por um homem psicótico que acreditava fielmente nas coisas que produzia como preparações para o Apocalipse e para o retorno do Senhor Jesus Cristo; sua produção plástica, sua arte, era sua salvação no entanto. E, muito provavelmente, era o que permitia que se relacionasse ao seu modo com as demais pessoas, não adoecendo ainda mais. Quero dizer com isso que não interessa se o artista é saudável ou doente, leigo ou letrado, branco ou negro, mulher ou homem, cis ou trans, homossexual ou heterossexual. O aspecto biográfico, embora se manifeste na obra de arte, não a torna exclusivamente biográfica. A biografia de um artista não determina um parâmetro exclusivo de viés personalista para sua apreciação, interpretação e discussão. Gombrich argumenta muito bem sobre isso (bem mais elegantemente que eu, diga-se de passagem) em seu Meditações sobre um cavalinho de pau, de 1963, num ensaio onde fala diante da Sociedade Britânica de Psicanálise chamado A Psicanálise e a História da Arte. Outro que ataca o argumento personalista é Noël Carroll em seu Para Além da Estética, de 2001, ao discutir a filosofia de Monroe Beardsley e Wimsatt. Outro, ainda, que se ocupou diretamente desse tema foi, interessantemente, Marcel Proust em seu incrível ensaio chamado Contre Sainte-Beuve, publicado postumamente em 1954. A tendência crítica do biografismo precisa ser dimensionada nas tradições de estudo e pesquisa sobre a arte, ganhando um lugar específico dentro delas. Mas não gera, ou não deveria gerar, um aporte totalizador da nossa compreensão e da nossa contemplação da obra de arte. Tão mais inadequado quando ele ganha o senso comum, tornando-se estereótipo de um modo de encarar o artístico e de estofar preconceitos.

Minha intenção com esse pequeno ensaio foi a de tentar mostrar que, no limite, algumas das posições que se expressaram nos comentários ao meu texto sobre censura podem (e devem) ser tomadas seriamente como argumentos para a defesa da censura. Nesse sentido, são argumentos elaborados a partir de teses sobre a natureza da arte, sobre a natureza da experiência estética, o lugar de ambas na sociedade e nas culturas e, por fim, sobre as relações da produção artística com a administração pública e com a dimensão subjetiva de seus produtores. Se não forem tomados desse modo, restam como meras ofensas, meros dizeres que, desimplicados do pensamento e da possibilidade de diálogo, tornam a palavra uma coisa vazia, morta. Essa ideia mais geral e que circunscreve meu ensaio toma hoje, pessoalmente, uma dimensão importante. Eu, que trabalho diariamente com as palavras, as que escrevo eu mesmo ou as que leio de outros ou ainda as que divido com outros tantos que fazem como eu, tenho me inquietado cada vez mais com a desvalorização dela em nossa cultura brasileira. Quero, sim, que a palavra não morra. E que não morra com ela o que conhecíamos como conversa, debate, mundo. Mas se morrer, estejam seguros: Tão logo construiremos outro.

Porto Alegre, agosto de 2019

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Guilherme Mautone

Atento aos sinais | Doutor em Filosofia pela UFRGS | Filosofia da Arte, Estética e Crítica de Arte