Sobre plenitude e vaziez na videoinvasão de 2009

Apropriação de espaços, reestruturação de dispositivos institucionais e mundo da arte.

Guilherme Mautone
13 min readAug 7, 2019

Texto preparado para Exposições que marcaram a história: vivências e relatos. Anelise Valls & Paula Trusz (Org.). Centro Cultural da UFRGS | Abril a julho de 2019.

Exposição O PLENO ou O VAZIO, Espaço Ado Malagoli, Instituto de Artes, UFRGS, de 17 a 25 de novembro de 2009. Foto: Eduardo Montelli e Juliano Ventura.

1.

Por que escolhi falar de O PLENO ou O VAZIO? Na época eu acompanhava de perto o trabalho de Eduardo Montelli e Juliano Ventura, bem como o de Isabel Ramil e Letícia Bertagna. De modo que as experiências do convívio com esses artistas me proporcionaram marcaram decisivamente meu modo de pensar as relações entre reflexão filosófica e produção e recepção de arte. Sobretudo a arte contemporânea. Em função dessa proximidade tive a oportunidade de acompanhar muito de perto todo o processo de concepção de ideias artísticas, das inspirações iniciais às discussões sobre as diferentes camadas de sentido de um trabalho, da tentação de romper com certas tradições ao desejo de se alinhar a outras, bem como das minúcias produtivas e elaborativas aos detalhes expográficos. O PLENO ou O VAZIO, no entanto, se me recordo bem, foi planejado um tanto em segredo. O que hoje parece complemente adequado, considerando o aspecto disturbacional da própria exposição. Uma invasão, invasão de um espaço por vídeos e por objetos.

Falando agora da exposição especificamente. Tomo a liberdade de ler um pequeno texto de Juliano Ventura, escrito pra Revista Investigação nº 11, entre as páginas 35 e 37, quase um ano depois da inauguração da exposição.

2.

Farei agora alguns comentários sobre a exposição para depois incomodá-los com algumas reflexões que têm me ocupado nos últimos anos sobre mundo da arte, sistemas de arte e contextos. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de entender melhor o que são essas coisas e como temos entendido elas atualmente. Mas, primeiro, a exposição…

Em primeiro lugar é interessante pensar que O PLENO ou O VAZIO, essa exposição que agora em novembro fará 10 anos, produz uma subversão em relação aos lugares ocupados pelos seus ‘agentes’. Nessa exposição não houve uma delimitação precisa de artistas, curadores, montadores, etc. Inclusive não houve uma delimitação de público, uma vez que a exposição não foi sequer divulgada amplamente. Os artistas, Eduardo Montelli e Juliano Ventura, tiveram seus trabalhos expostos junto do trabalho de um coletivo dinamarquês e foram responsáveis também pela curadoria dessa exposição e por todo o planejamento expográfico dela; pela sua montagem, manutenção, desmontagem e, inclusive, pelas caipirinhas que serviram à título de vernissage para quem por ali passava, meio atônito, num misto de curiosidade e perplexidade. Não sei bem, já não me recordo, se eles pensaram necessariamente sobre as dimensões dessa escolha (ou dessa imposição), mas é certo que a regra estabelecida por eles — invadir com uma exposição estratégica aquele espaço — exigiu um tipo de subversão desses papeis mais rígidos.

Já que comentamos sobre uma regra, também penso ser importante revisitá-la e tomá-la, então, enquanto uma intenção originária dessa exposição, dessa videoinvasão. Era preciso expor alguma coisa ali, mas que coisa era essa? E como expô-la? Era preciso, nas palavras do próprio Juliano Ventura, em seu texto sobre a exposição escrito um ano depois, “marcar uma posição frente a (…) conjuntura” de ociosidade do espaço em função de um engessamento institucional, já que essa conjuntura “tomava naquele momento um sentido bastante forte para nós” (VENTURA, 2010, p. 36). A necessidade, portanto, de marcar posição se traduziu na época numa reestruturação estrategicamente artística dessa ociosidade: “teríamos que reestruturá-los” (VENTURA, 2010, p. 36).

Eu arriscaria sugerir que o espaço ostentava ao longo de todo o ano de 2009, uma melancolia típica, que o deixava à mercê de uma sombra ambivalentemente projetada por um certo idealismo da gestão do Diretório Acadêmico Tasso Correa. Idealismo que, tão logo, se transformaria em luto. Ora, esse retorno especular, narcísico, no qual algo inicialmente vital se volta e ataca aquilo que fora antes sobre-idealizado, é um dos complexos destinos dessas forças que movem os corpos orgânicos e, também, os corpos institucionais. Mas se não forem canalizadas e conduzidas com alguma estratégia, essas mesmas forças, represadas, acabam por se traduzir em inércia, inação e ociosidade.

Diante disso, a convocação pessoal que Eduardo Montelli e Juliano Ventura fizeram um ao outro em parceria consistiu em buscar outras possibilidades de destinação, de encaminhamento corajoso e de implicação pragmática. Eles certamente sabiam, como bons artistas, que sem isso até as mais triunfantes ideias padecem vazias, desarticuladas.

Assim, pontualmente às 18h00, do dia 17 de novembro de 2009, o Espaço Ado Malagoli passou a ser habitado por uma exposição, fruto de uma videoinvasão, consistente de 6 televisores, 4 aparelhos de DVD, fiações elétricas, extensões e benjamins. 4 desses 6 televisores transmitiriam, em looping, 4 videos diferentes, enquanto os outros 2 permaneceriam desligados. Começarei pelos televisores desligados.

Ambos foram intitulados TV ESTRAGADA (de Eduardo Montelli e Juliano Ventura, 2009) e eram, como adiantavam suas plaquinhas de identificação, televisores desligados inseridos naquele novo contexto. Pergunta. O gesto de colocar no espaço expositivo o objet trouvé, o ready-made, remete evidentemente na nossa tradição artística aos empreendimentos duchampianos de apresentar ao crivo do público da arte meros secadores de garrafa, ar preso em ampolas de vidro, pentes e mictórios como obras de arte. Isso, penso, já sugeria a identificação de Juliano Ventura e Eduardo Montelli com essa linhagem poética.

Os vídeos expostos nos outros 4 televisores suscitavam, cada um ao seu modo, tanto a temática da apropriação nas artes, quanto a questão da presença e da ausência, da plenitude e vaziez.

Em Ninguém vive só de laranjas, Montelli tomou algumas imagens jornalísticas gravadas no advento da cobertura de uma invasão do MST a uma fazenda de laranjas no interior de São Paulo. O artista se apropriou dessas imagens, as editou e depois as inseriu num outro contexto, reativando assim um outro sentido pra’quela invasão. Um dos aspectos mais marcantes do vídeo consiste nas tomadas em que um trator, gravado de cima provavelmente por um helicóptero, é visto derrubando uma a uma as fileiras de laranjeiras da fazenda como se fossem peças de dominó.

Outra apropriação importante realizada pela exposição consistiu na apresentação de um vídeo do coletivo dinamarquês chamado Superflex. Ventura e Montelli, dessa vez enquanto curadores, tomam o vídeo Burning Car, onde takes que somam quase 12 minutos apresentam um carro sendo lentamente consumido pelo fogo, e o apresentam ali pirateado, fazendo assim um statement curatorial. O coletivo, cujo trabalho questiona as narrativas de uma arte desalojada de questões vitais, econômicas e sociais, ingressa, portanto, na exposição sob a possibilidade de uma ilegalidade na seara dos direitos autorais.

E, por fim, Juliano Ventura apresenta dois vídeos seus na exposição. O primeiro, chamado Não Basta, foi gravado no próprio Instituto de Artes da UFRGS, na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, espaço que na época era reservado a exposições mais augustas e que atravessavam certamente todos os trâmites formais da instituição. O segundo vídeo, chamado Golpes de luz em ambiente de vídeo, foi gravado num dos armazéns do cais do porto em Porto Alegre. No vídeo vemos o artista, imóvel e à direita do enquadramento, que desaparece e reaparece sempre que uma fonte luminosa apaga e acende. Nesse vídeo, Ventura realiza uma retomada da discussão sobre presença e ausência, pleno e vazio, vinculando essa dicotomia com o jogo de escuridão e luminosidade, luz apagada e luz acesa. Embora seja mais apropriado estabelecer o nexo entre luz e sombra com a temática da plenitude e da vaziez, não me parece algo excessivo operar um deslizamento semântico e sugerir tamb que há também em Golpes de luz em ambiente de vídeo uma referência à temática da luz e da sombra em artes visuais que, como todos sabemos, indicam um artifício e um tópos de relevância na história da pintura ocidental. Ademais, aparecer (sob a luz acesa) e desaparecer (sob a luz apagada) também poderiam remeter à própria presença e ausência do artista e, portanto, da arte, no espaço Ado Malagoli, reencenando (talvez num horizonte sublimatório) a presença e ausência da arte no espaço expositivo invadido. Lembremos que o vídeo, gravado num dos armazéns abandonados e antes ocupado pela Bienal do Mercosul, também poderia remeter à presença e à ausência da arte na própria cidade em intervalos bienalescos. Nesse sentido, o vídeo nos remeteria igualmente ao enfrentamento das nossas taras e manias pela novidade dos acontecimentos grandiloquentes, como uma Bienal de arte; quando, na verdade, há arte todo dia em Porto Alegre. Desdobra-se potencialmente daí toda uma discussão relevante sobre quem faz a curadoria dessa Bienal, quais artistas são escolhidos, sob quais critérios, quantos deles são artistas locais, quais os lugares de vivência e experimentação de arte na capital, etc…

Falar de uma arte que está diariamente presente, mas que é esquecida com a chegada de babilônicas bienais de arte e da camarilha de jornalistas ávidos pela ineditismo lancinante dos fait-divers artísticos da cidade, faz com que eu me lembre de um texto de Georges Perec, chamado Aproximações de Quê?. Esse texto, que havia nos sido gentilmente sugerido por Élida Tessler e que era sempre referenciado em nossas digressões artísticas da época, consolidando um verdadeiro e incontornável parti-pris de noitadas na Cidade Baixa ou no BomFim, pautava discussões acaloradas e escolhas artísticas. Ronda esse texto do início ao fim um chamado pelo ordinário, uma proposta de apreciação do comum, uma experimentação metodológica daquilo que se presentifica todo o dia e que retorna todo o dia. Perec nos convidava a pensar sobretudo naquilo que vibrava em insidioso silêncio pelas coxias enquanto o espetáculo da Arte Oficial acontecia, preenchendo a suposta vaziez de seus intervalos bi-anuais e capturando sorrateiramente todas as pautas dos jornais locais.

Essa era uma das muitas fontes de inquietação do nosso informal grupo em 2009 e, parece-me, que consolidara também uma das intenções originárias de O PLENO ou O VAZIO, traduzindo-se como nos lembra Juliano Ventura em um certo “desfoque institucional” (VENTURA, 2010, p. 37). Feito esse desvio pelas minhas lembranças, gostaria de propor à título de encerramento, algumas ideias sobre a questão das instituições de arte desde a perspectiva mais ampla do que chamamos de mundo da arte ou sistemas de arte. À parte dos meus pulinhos psicanalíticos, que talvez alguns não tenham notado quando comentei sobre a melancolia do espaço Ado Malagoli em 2009 manifestada pela sua inércia expositiva, acredito que possamos colocar a discussão sobre a instituições de arte em termos mais filosóficos.

3.

Refiro-me, sobretudo, à ideia inadequada — pois carente de facticidade e de objetividade — de mundo da arte, ou sistema das artes, entendido como um suposto somatório dessas instituições de arte. Tem-se por vezes defendido a ideia de que o mundo da arte consiste numa descrição minuciosa de todas as instituições que apresentam, cultivam, fomentam ou detém acervos e/ou obras de arte. Essa ideia me parece enganadora e também capaz de trazer para discussão sobre a arte uma ênfase institucional em sua definição, pretendendo delimitar de modo canhestro o que é e o que não é arte a partir de um critério de presença dentro da instituição.

É importante lembrar que a noção de mundo da arte aparece acredito que pela primeira vez no jargão filosófico em 1964 com os trabalhos de Arthur Danto, em especial em seu homônimo artigo O Mundo da Arte (1965). Há, portanto, um contexto específico de aparecimento do termo na história da filosofia e, sobretudo, na história de uma filosofia da arte. A apresentação das Brillo Soap Pad Boxes de Andy Warhol, em 1964, na Stable Gallery em Nova Iorque, recoloca, na visão de Danto, o trabalho de Warhol na esteira das propostas duchampianas sobre o que determina um objeto como obra de arte no advento do ready-made. A tese de Danto consiste em afirmar que tanto o trabalho de Duchamp, como o de Warhol, estão cada um a seu modo inseridos em pontos de clivagem e de soçobramento da narrativa histórica da arte ocidental estruturada internamente por uma teleologia continuísta implicada com formas. Diante dessa narrativa, as Brillo Boxes de Warhol, para que sejam identificadas e credenciadas satisfatoriamente enquanto obras de arte, precisam ser interpretadas dentro de um contexto específico de produção capaz de reconhecer esse soçobramento e, com ele, uma descontinuidade da própria narrativa. Com Joseph Kosuth, cinco anos mais tarde, em A arte depois da filosofia (1969) temos a elaboração teórica e pessoal de um artista que ousa denunciar, de dentro do formalismo estetizante de Clement Greenberg com sua planaridade e seu encontro do meio próprio de expressão da pintura, a limitação dessa narrativa que apresenta como algo determinante para a arte a autorreferencialidade expressiva e formal. A busca por outros critérios que não os formais, visuais, morfológicos, começa a ingressar de modo sistemático inclusive na reflexão teórica do artista.

Procurar entender e defender filosoficamente, como fez Danto, que a determinação dos objetos artísticos deixa de depender de seu eixo morfológico, renunciando assim a uma insistência formal e visual para sua identificação de coisas como arte, implica, portanto, buscar pelos fundamentos de novos critérios de identificação. Essa é, grosso modo, a necessidade que subjaz à proposta de Danto ao formular sua ideia de um mundo da arte. Quando afirma que “para ver algo como arte é necessário algo que olho não pode mais discriminar — uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento de história da arte: um mundo da arte” (DANTO, 1964, p. 580), ele assenta com precisão esses fundamentos. Depois de Duchamp e de Warhol, que são como paradigmas ou modelos (lembrando aqui do sentido de paradigma pensado por Thomas Kuhn), será necessário postular a existência de um contexto que, invisível ao olho (logo, algo não-estético, algo para além da estética), subscreve a origem intencional e também o destino contextual desses objetos, num mecanismo quase tautológico de encaminhamentos e reencaminhamentos.

É que quando a arte passa a alojar aquela discussão filosófica sobre os indiscerníveis, avançada por Leibniz no século XVII, torna-se então imprescindível a postulação de outros dispositivos de discriminação e descrição. Diante de um pente, de um urinol, ou de uma caixa de sabão, de repente apresentados enquanto obras de arte, exige-se necessariamente que novas modalidades discriminatórias sejam pensadas. E, sobretudo, modalidades que não dependam de aspectos fenomenologicamente disponíveis.

Importante ressaltar que a noção de mundo da arte cunhada por Danto herda sua inspiração de uma filiação filosófica a filosofia da ação e a todo o giro linguístico que marca boa parte da história filosofia ocidental no século XX. Elizabeth Anscombe, a importante filósofa inglesa, e Ludwig Wittgenstein, o pensador austríaco que abalou as tentações logicistas de explicação do significado de Russell e Frege, encontram eco no pensamento de Danto. Wittgenstein em especial elaborará sua tardia filosofia da linguagem sob a insistência dos contextos de uso como determinantes na identificação de certas coisas como ‘linguagens’ e de explicação do processo de significação linguística. Quando ele remete a discussão filosófica sobre a essência da linguagem aos jogos de linguagem e às formas de vida, é ao aspecto prático, contextual, vivo da linguagem que ele se refere: é ali, na linguagem posta em prática que devemos encontrar a sua determinação filosófica. Com a noção de ‘forma de vida’, por exemplo, (“uma linguagem é uma forma de vida” Cf. WITTGENSTEIN, 1953, § 4–5), Wittgenstein pretende chamar a nossa atenção para a possibilidade de identificarmos certas coisas com base em suas mutações diacrônicas e seus graus de complexidade sincrônicos, retomando o problema filosófico da mudança que está no cerne de uma discussão metafísica, ontológica, sobre identidade e diferença que remonta, pelo menos, a Aristóteles e Platão.

Nesse sentido, a elaboração da noção de mundo da arte por Danto é debitária de Wittgenstein, porque mundo da arte envolve sobremaneira as noções de teoria e de história, e não refere exclusivamente às instituições de arte. Ou seja, remete à historicidade de um campo, aos mecanismos de transmissão de linguagens apropriadas a ele, aos modos de falar e de se referir às coisas, aos procedimentos adotados pelos diferentes integrantes dentro desse campo, às formas de comportamento, educação, formação, transmissão. Ao cogitarmos mundo da arte por um viés mais generoso, como estou sugerindo aqui, importamos para dentro desse conceito uma infinidade de coisas que são determinantes para a concepção, produção, destinação, recepção e discussão de arte na atualidade. Coisas que são negadas, somente, por alguns filósofos que preferem a segurança limitante das arquiteturas teoréticas, mas que não ousam se inquietar diante das múltiplas plissagens que a arte corajosamente nos oferece a pensar. Esse é, sobretudo, um alerta aos meus companheiros filósofos: sim, a arte pensa por si própria e pacientemente nos desafia colocando suas questões, de modo que faremos muito melhor se não desviarmos delas com respostas rápidas, ou virarmos rapidamente o rosto com desinteresse pelas ditas “questões encerradas”. É preciso notar, observar, com paciência, a arte e, sobretudo, seus contextos de manifestação. Como disse Wittgenstein nas Investigações Filosóficas: “Não pense, veja!”. Ou como disse Hilda Hilst, muito melhor que Wittgenstein, num de seus poemas: “Olha-me de novo. Com menos altivez e mais atento”.

Aponta-nos um outro caminho bastante corajoso e atento, por exemplo, Maria Amélia Bulhões, quando faz questão de trazer à tona as referências sociológicas que nos permitiriam pensar na ideia de sistemas da arte. Seu trabalho, há anos, desenvolve-se na tentativa de recuperar os trabalhos relevantes de Howard Becker e de Bourdieu, afim de lastrar conceitualmente uma perspectiva sistêmica das artes em suas diferentes estratificações sociais, culturais e também mercadológicas. O trabalho de Becker, de 1977, chama-se ironicamente Mundos da Arte e o de Bourdieu, com seus conceitos de ‘campo’ e ‘habitus’, As Regras da Arte (1983). Becker pensará as artes como modalidades peculiares de “atividade humana que envolvem a ação conjunta de um número muitas vezes grande de pessoas. É através da cooperação delas que a obra de arte que vemos ou escutamos vem a ser e continua a ser. As formas de cooperação podem ser efêmeras, mas quase sempre se tornam repetitivas e produzem padrões de atividade coletiva que chamamos de mundo da arte” (BECKER, 1977, p. 1).

E para encerrar — finalmente! — lembro a todos nós que a filosofia de Danto é um divisor de águas para a compreensão do que hoje tomamos como mundo da arte, especialmente se considerarmos sua genealogia e suas heranças filosóficas. Danto procurou assentar filosoficamente alguns fundamentos possíveis que possibilitassem a concessão do estatuto de arte a novos objetos (como as Brillo Boxes de Warhol), ousando uma reformulação do próprio fundamento estético dentro de filosofia da arte. Dirá Danto:

“Para o futuro indefinido, a arte será a fatura pós-histórica da arte. Seria inconsistente com esse insight em relação à história procurar uma história ulterior para ele. Mas a história ulterior deve ser tomada pela filosofia e, distintamente da arte, a filosofia é algo que não terá uma fase pós-histórica porque, quando a verdade é encontrada, não há mais nada a ser feito. Nenhum outro pensamento seria mais cruel que o de um filosofar sem fim, que é um argumento de que a filosofia não é arte e de que o pluralismo é uma má filosofia da filosofia. (…) a arte tem sido o meio para filosofia em ambas as extremidades de sua história, mas aqui, especialmente, ao se transformar em seu próprio objeto, ela transformou o todo da cultura, tornando possível uma filosofia final; ela serviu como um meio evolutivo do tipo mais elevado. Se me perguntassem qual artista deveríamos reproduzir, minha resposta seria: os artistas com um senso de ação necessário para a sobrevivência no mundo artístico atual. Contudo, a questão mais importante é: quais filósofos deveriam ser reproduzidos? Minha resposta é: aqueles filósofos que podem nos dar uma filosofia que a arte já preparou para nós” (DANTO apud DUARTE, 2014, p. 249).

Referências

BERTAGNA, L. & MAUTONE, G. (Edts.) Revista Investigação nº 11. Volume 1. Porto Alegre: 2010.

BECKER, Howard. Art Worlds. California: University of California Press, 1977.

BOURDIEU, Pierre. As Regras Da Arte. São Paulo: Cia. Das Letras, 1999.

DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Trad. Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

DANTO, Arthur. The Artworld. In The Journal of Philosophy. Vol. 61, №19, American Philosophical Association (Oct. 15, 1964), p. 571–584.

--

--

Guilherme Mautone

Atento aos sinais | Doutor em Filosofia pela UFRGS | Filosofia da Arte, Estética e Crítica de Arte